← Voltar Publicado em

Wellness burnout e a ditadura da performance

Reprodução/Pexels

Entre looks de academia combinando e rotinas perfeitas no TikTok, o culto à performance
tomou conta até dos momentos mais íntimos — e pode estar afetando nossa saúde mental.

Em tempos de boom de conteúdos de wellness e lifestyle, parece que não existe mais espaço para simplesmente ser e fazer. Tudo precisa ter uma estética impecável, ser compartilhável, inspirar ou, no mínimo, render uma boa postagem. Não basta ir à academia: é preciso ter o look certo, o tênis da marca queridinha, a garrafa térmica estilosa. Não basta beber água: tem que ser com a garrafa “perfeita”, que virou símbolo de status e organização. Até o descanso virou meta, e o prazer se transformou em mais uma tarefa a cumprir com excelência.

O fenômeno ganhou ainda mais força nas redes sociais, especialmente com o TikTok, onde
conteúdos sobre rotinas matinais, skincare, treinos e alimentação saudável acumulam milhões de visualizações. Como apontou recentemente o comunicador, escritor e pesquisador Jorge Grimberg: “por que o TikTok é tão obcecado por esses conteúdos de rotina perfeita, e seguimos dando audiência para
quem parece sempre melhor que a gente?”. A pergunta toca num ponto sensível: será que o culto ao bem-estar está nos esgotando?

Reprodução/Pexels

Reprodução/Pexels

Jorge nomeia esse movimento como wellness burnout: o esgotamento não apenas pelas pressões do dia a dia, mas pela necessidade de performar até mesmo nos momentos dedicados ao autocuidado e ao lazer. Embora atinja a todos, essa dinâmica afeta especialmente as mulheres. A performance estética e comportamental sempre foi exigida delas, mas agora ganhou novas camadas: para treinar, precisa do conjunto combinando e do suplemento certo; para falar sobre moda, é quase obrigatório ter um guarda-roupa até para um simples hábito saudável, diverso e atualizado, evitando repetir roupas; ao beber água, há uma expectativa de que se use o acessório mais cool, que se encaixe perfeitamente no lifestyle aspiracional promovido online.

Não que ter um look combinando ou uma garrafa estilosa seja um problema — o ponto é quando essas referências se tornam barreiras. Muitas mulheres deixam de iniciar um treino ou um novo hábito saudável porque sentem que não têm o “kit” necessário para isso. É como se, sem a atuação completa, o esforço não valesse a pena ou não fosse legítimo.

Essa lógica de performance constante cria um ciclo de comparação e inadequação, em que o “ser” perde espaço para o “parecer ser”. A validação externa, via curtidas, comentários ou simples pertencimento a um grupo que consome e exibe os mesmos produtos e hábitos, acaba pautando as escolhas mais íntimas.

Byung-Chul Han já alertava: o preço da sociedade do desempenho.

Esse fenômeno, na verdade, foi previamente analisado há mais de 15 anos pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, na obra A Sociedade do Cansaço (2010). Nela, Han aponta que a sociedade disciplinar, descrita anteriormente por Michel Foucault — baseada em instituições como hospitais, presídios e fábricas — perde espaço para uma nova forma de organização coercitiva: a sociedade de desempenho.

Segundo Han, vivemos a era da “violência neuronal”, onde as pessoas se autocobram cada vez mais para apresentar resultados, tornando-se, ao mesmo tempo, vigilantes e carrascas de si mesmas. A ideologia da positividade opera uma inversão perversa: num momento histórico em que poderíamos trabalhar menos e ganhar mais, acabamos nos submetendo a trabalhar mais, receber menos e transformar até o lazer e o autocuidado em mais uma obrigação produtiva.

Como ele escreve:

“A sociedade disciplinar de Foucault, feita de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas, não é mais a sociedade de hoje. Em seu lugar, há muito tempo, entrou outra sociedade, a saber, uma sociedade de academias de fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers e laboratórios de genética. A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho.”

A autocobrança por mais produtividade, eficiência e entrega transforma o sucesso em um fim absoluto, ainda que isso coloque o bem-estar individual em xeque. E o preço dessa cultura é alto: exaustão crônica, sobrecarga emocional e uma explosão de doenças como depressão, ansiedade e burnout.

Han também destaca o papel central da tecnologia nesse processo: a necessidade de estar permanentemente conectado, respondendo mensagens instantaneamente e mantendo uma presença online impecável, multiplica as demandas e acentua a sensação de sobrecarga e esgotamento. A cultura do cansaço é, em sua maioria, alimentada por essa pressão de performar não apenas na vida profissional, mas também na pessoal e no autocuidado.

Esse excesso de exposição e comparação tem impactos profundos na saúde mental, como explica a psicóloga Cláudia Medeiros (CRP 06/37783-6): “Nas redes sociais, as pessoas tendem a compartilhar apenas os aspectos positivos, esteticamente agradáveis e bem-sucedidos de suas rotinas, criando uma ilusão de que existe um padrão ideal a ser seguido”. Segundo ela, essa comparação constante pode provocar sentimentos de inadequação, baixa autoestima e até sintomas de ansiedade e depressão.

Além disso, Cláudia destaca que essa necessidade de performar está ligada ao desejo humano de pertencimento e validação social. “Vivemos em uma cultura cada vez mais pautada pela aparência e pela performance, em que o valor pessoal muitas vezes é medido por aquilo que mostramos — e não pelo que somos, de fato. Assim, atividades que deveriam ser espontâneas e focadas no bem-estar pessoal acabam se transformando em mais uma vitrine, gerando uma pressão constante para que tudo seja feito da maneira ‘certa’ e esteticamente perfeita.”

Quando o autocuidado vira mais uma obrigação a ser performada, perde-se justamente o que ele deveria oferecer: acolhimento, bem-estar e prazer.

Por uma relação mais leve com os hobbies

Como resgatar, então, uma relação mais leve e espontânea com os nossos hábitos e hobbies, sem nos deixar levar pela comparação e pela necessidade de validação externa?

Para Cláudia Medeiros, o primeiro passo é desenvolver uma consciência crítica sobre o conteúdo que consumimos e o impacto que ele tem sobre nós. “É importante lembrar que o que vemos nas redes sociais é uma curadoria, não uma representação fiel da realidade.”

Além disso, o autoconhecimento é fundamental para identificar quais hábitos realmente fazem sentido de forma genuína, e quais estão sendo mantidos apenas para atender a expectativas externas. “Também é essencial estabelecer limites saudáveis no uso das redes, cultivando momentos offline e investindo em práticas que gerem prazer e bem-estar de forma autêntica, sem a preocupação de ter que mostrar ou justificar cada escolha.”

O convite, então, é para um movimento oposto ao que as redes sociais tanto promovem: reaprender a fazer as coisas pelo simples prazer de fazê-las, sem a necessidade de transformá-las em um espetáculo. Ir à academia porque o exercício faz bem, e não porque o look está perfeito; beber água porque o corpo precisa, e não porque a garrafa é a tendência do momento.

Em um mundo cada vez mais pautado pela lógica da performance, talvez o verdadeiro ato de rebeldia seja simplesmente ser.